terça-feira, 13 de março de 2012

A Democracia que há

          Parece haver um estado democrático no Brasil. Escolhemos nossos governantes e nossos legisladores; a maioria da população é eleitora; não há censura prévia dos meios de comunicação; e há liberdade partidária. Formalmente vive-se uma democracia. De fato, porém, o Estado brasileiro é autoritário. Manifestações públicas são reprimidas com severidade; direitos fundamentais são ignorados, especialmente das pessoas mais pobres; e críticas aos poderes e poderosos são exemplarmente punidas, sempre respeitando-se as leis em vigor. A repressão da atualidade transveste-se de ordem jurídica. Hoje não são necessários grupos de extermínio, polícias secretas, prisões arbitrárias em porões ou sequestros. A truculência não precisa mais ser clandestina, podendo ser exercida à luz do dia e sob o olhar da sociedade e da imprensa, pois é legitimada por uma ordem jurídica aceita como justa.
          Os direitos de manifestação e de greve são garantidos constitucionalmente. O exercício desses direitos, todavia, deve se dar de modo muito discreto, sem afetar o cotidiano da cidade ou do estado em que ocorre, sob pena de ser julgado ilegal; de haver ordem judicial de dispersão do movimento ou de retomada das atividades, com imposição de multas ao sindicato ou associação organizadora; e de ter seus líderes e alguns outros participantes presos por desobediência ou desacato. É o mesmo que proibi-las. Uma greve que não cause transtorno a um serviço ou paralise uma empresa perde a essência de sua força, não serve para nada. Uma manifestação que não chame à atenção, que não tome as ruas, que não faça barulho, não é uma manifestação pública, é um encontro privado.
A greve dos caminhoneiros autônomos distribuidores de combustíveis ocorrida nesta semana em São Paulo recebeu uma ordem judicial para ser finalizada e serem as atividades retomadas no mesmo dia em que ela iniciou. Suas reivindicações não precisaram ser negociadas. Participantes da manifestação pela liberdade de expressão, que pedia discussão da descriminalização da maconha, no ano passado, também em São Paulo, foram presos com base numa ordem expedida pelo tribunal estadual sob a alegação de incitação ao crime.
          Sob o pretexto de manutenção da ordem jurídica, inúmeras medidas repressoras são tomadas com a finalidade de impedir cidadãos, geralmente os pobres, de exercer seus direitos, quando isto se dá contra interesses de pessoas ou grupos economicamente fortes. O caso recente de maior repercussão foi o do bairro Pinheirinho em São José dos Campos. O interesse de um famoso especulador financeiro foi sobreposto ao direito das centenas de famílias à moradia, com uso de extrema violência pela policia militar, amparada por ordem judicial e acompanhada no ato por um desembargador. Casos como esse são, infelizmente, rotineiros. Reintegrações de posse truculentas contra movimentos dos sem-teto e dos sem-terra são recorrentes. Algumas ficam famosas, como essa do Pinheirinho ou a de Eldorado dos Carajás. Da maioria, pouco se ouve falar.
          Outro mecanismo legal de repressão são as condenações por danos morais. Inserida no direito brasileiro pela Constituição de 1988, a indenização moral, que seria um mecanismo de defesa do direito fundamental à honra, tem sua finalidade constantemente distorcida pelo judiciário, que a usa para impedir a divulgação de fatos e opiniões. Não se pratica mais a censura prévia nem se prendem mais jornalistas para que se calem. O risco de sofrer uma condenação por danos morais, entretanto, torna muito perigoso divulgar alguma informação ou, principalmente, expressar alguma opinião que contrarie alguém com recursos e influência. Casos como o do jornalista paraense que foi condenado na justiça estadual a indenizar um grande empresário do Paraná por publicar matéria em que o chamava de grileiro, apesar de confirmada por sentença federal a grilagem, servem de exemplo. A justificativa da defesa da honra pode ser manipulada até extremos, como no caso da proibição, pelo tribunal do Distrito Federal, dirigida ao jornal Estado de São Paulo, de publicar matérias a respeito do caso Boi Barrica, por considerar a divulgação de fatos desse caso potencialmente ofensiva à moral da família Sarney.
          Não vivemos uma democracia porque realmente não temos a liberdade que é intrínseca à democracia. Não basta a previsão de liberdades e direitos se o seu exercício real não é possível. A concessão de ordens e condenações judiciais reprimindo o exercício da cidadania é prática contrária a uma democracia de fato. As limitações ao exercício eficaz do direito de greve, as proibições de manifestação pública, os impedimentos à defesa de direitos fundamentais pelos cidadãos mais pobres e a imposição de indenizações morais contra a divulgação de fatos ou a livre manifestação de opinião demonstram a permanência de um estado autoritário no Brasil. Por não ser clandestina, e sim amparada por decisões judiciais e interpretações injustas da legislação, a repressão não se torna legítima.

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