terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A tortura “legalizada”

          Conforme os termos da Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura, agentes públicos e privados em função pública, como segurança, por exemplo, cujas atividades estão ligadas ao sistema prisional brasileiro, são torturadores. A aplicação do direito penal do Brasil é conflitante com os termos daquela convenção, principalmente em razão da prevalência de uma finalidade protetiva patrimonial do direito penal nacional e da má formação dos operadores do Direito, em especial no tocante aos Direitos Humanos. Uma grande reestruturação dos mecanismos de aplicação do Direito Penal no Brasil é mais urgente do que uma mera reforma legislativa para endurecimento das penas.
          Usa-se correntemente a frase: “cadeia não é hotel”, ou alguma outra semelhante, para exprimir a ideia de que não seria justo investimentos de infraestrutura no sistema prisional porque as pessoas lá inseridas não teriam direito a qualquer conforto, merecendo passar seu tempo de cárcere em condições as mais “penosas”. Não há segredo sobre as degradantes cadeias brasileiras: falta extrema de higiene, violência generalizada, cinco ou dez pessoas ocupando espaço destinado a apenas uma etc. Situação que indubitavelmente é a descrita pelo artigo 1º da Convenção da ONU, que considera tortura infligir dores ou sofrimento agudos, físicos ou mentais, com finalidade de castigo. Esta mesma norma determina que são autores da tortura quem praticou diretamente os atos que resultaram em dor ou sofrimento e, também, quem instigou, deu consentimento ou aquiescência. Não é difícil concluir-se que não só o carcereiro que mantém o preso em sofrimento, mas o policial que o prende, o delegado que o mantém preso, o promotor que pede a sua condenação e o juiz que o sentencia determinando a pena de prisão são torturadores, no teor da norma internacional.
          O problema pode estar na eleição do Direito Penal como um meio de proteção do rico contra o pobre, promovendo a segurança do patrimônio em prevalência a qualquer outro valor. Não faltam estatísticas demonstrando que as condenações penais no Brasil, quase que exclusivamente recaem sobre os mais pobres, pela autoria de crimes contra o patrimônio. Para as modalidades de crime, como os crimes tributários ou contra a economia, por exemplo, que em tese teriam como autores cidadãos mais abastados, praticamente não ocorre a prisão dos autores. E os crimes contra a vida em que a vítima é pobre, em mais de noventa por cento dos casos não é esclarecida a autoria.
          A ignorância dos agentes, na maioria dos casos, pode ser uma melhor explicação das suas condutas do que um desígnio covarde. Dos policiais e carcereiros não se exige formação superior. Sua admissão se dá por um concurso em que se cobram noções de português e regras jurídicas burocráticas básicas. Após o ingresso no serviço público, há uma formação específica, mas superficial e rápida, de alguns poucos meses. Dos juízes, promotores e delegados é exigida a diplomação em Direito, o que não garante formação suficiente para o entendimento um pouco mais profundo do papel que executam na sociedade e de como ela funciona. Os cursos jurídicos no Brasil deixaram de ser cursos de “Ciências Sociais e Jurídicas” e passaram a cursos de “Direito” por causa das reformas ocorridas nas décadas de 1960 e 1970, que privilegiaram a formação burocrática e tecnicista em detrimento da humanista, com o abandono do currículo único pelo mínimo. Como reflexo, os graduados em Direito não mais recebem a formação social e humanista que lhes era marcante, o que lhes limita o entendimento das causas, finalidades e consequências de seus atos profissionais.
Adiciona-se a grande concorrência dos concursos, que privilegia quem tem possibilidade de não trabalhar durante os estudos para dedicar-se à preparação para as provas; além da cobrança de um conhecimento detalhado das leis em vigor, simplesmente, sem mais profundas indagações sociológicas, históricas ou filosóficas. Há, ainda, o agravante de os candidatos mais propensos ao sucesso, nestes concursos, serem jovens oriundos das classes sociais mais abastadas, que nunca exerceram uma atividade profissional para seu sustento e, portanto, desconhecem, na prática, o mercado de trabalho e as dificuldades enfrentadas pela maioria da população para sua sobrevivência.
          Deste amálgama de ignorância e insensibilidade resulta a prática cotidiana de tortura (conforme entendida pela Convenção da ONU aqui ratificada) no Brasil ao ser cumprida a legislação penal em vigor. Uma solução para este conflito passa pela estruturação de um sistema prisional com condições razoáveis de higiene e conforto para os detentos; pela reforma do Direito Penal para previsão de penas e efetividade de condenações conforme critérios de justiça condizentes com os princípios da democracia; pela melhor formação dos chamados operadores do direito; e por critérios mais socialmente sensíveis e justos de seleção dos agentes públicos envolvidos com o sistema prisional e o Poder Judiciário.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário