terça-feira, 27 de março de 2012

Automortes

Mais do que um meio de transporte inadequado para uso generalizado e preferencial nas grandes cidades, os automóveis são um problema de saúde pública. Não se discute mais se é viável a priorização dos automóveis para o deslocamento da população dos maiores centros urbanos. Imensos investimentos em avenidas, túneis e viadutos se mostram insuficientes para garantir a fluidez dos veículos das ricas metrópoles dos países do norte e das caóticas aglomerações urbanas do sul. Algumas horas são perdidas em congestionamentos todos os dias por cada morador, o que resulta em graves prejuízos à qualidade de vida, à saúde e à economia. Nos países com infraestrutura mais deficiente, como o Brasil, também sofrem os motoristas das cidades médias. Esses problemas, todavia, não são os únicos nem os mais graves resultantes do automóvel. É elevado o número de mortes resultado da utilização em massa dessa máquina, em virtude dos acidentes em que está envolvida, da poluição que causa e dos crimes dos quais é a motivação. Os benefícios desse meio de transporte acabam por ser suplantados pelos danos que causa.
          Mais de quarenta mil pessoas morrem por ano no Brasil em acidentes com automóveis, número equivalente a uma guerra de grandes proporções. Não é a má conservação das vias ou a qualidade dos veículos o motivo de tantas mortes. A maioria desses acidentes tem como causa a imprudência dos motoristas. O comportamento inadequado ao dirigir, apesar do risco evidenciado pelas estatísticas, explica-se pelo despreparo do condutor desde sua formação social até a preparação para o exame de habilitação. Há difundida na sociedade uma relação muito intensa entre automóvel e poder, a qual a publicidade das montadoras e os esportes motorizados só vêm acentuar. Inúmeros estudos científicos realizados desde o início da década de 1940, quando esta máquina se popularizava, comprovam que o comportamento ao volante das pessoas se altera para maior agressividade, competitividade, egoísmo e sensação de potência. Permeados de superficialidade e corrupção, a má qualidade da formação nas auto-escolas e o problemático sistema de avaliação dos candidatos garantem a perpetuação do comportamento assassino dos motoristas.
          A poluição emitida pelos automóveis não é composta somente de óxidos de carbono, causadores de efeito estufa na atmosfera, e de nitrogênio, responsável pela chuva ácida, mas também de compostos de enxofre e partículas sólidas, que causam danos gravíssimos à saúde de toda a população. A expectativa de vida nas maiores cidades é diminuída entre dois e cinco anos em decorrência da poluição dos veículos. Problemas respiratórios, enfartos cardíacos e acidentes vasculares cerebrais são potencializados. Em épocas de maior concentração de poluentes, milhares de crianças e idosos sobrecarregam os hospitais. O preço pago pela população das cidades pela escolha equivocada do transporte, priorizando-se o automóvel, são a saúde e a vida.
          A violência e a morte também são produto da criminalidade relacionada com os veículos. Furtos e roubos de automóveis ocorrem em número assustador em cidades de todos os portes. Um mercado negro gigantesco de autopeças e veículos clonados funciona em todo o país, em alguns casos com a conivência ou, até mesmo, a participação das autoridades. A indústria do seguro lucra com prêmios (valor pago à seguradora pelo seguro) cada vez mais altos, porém obrigatórios, face à grande possibilidade de perda do bem. Com o agravante de que nos últimos anos aumentou sensivelmente a proporção de roubos (subtração com violência) e latrocínios (matar para roubar) em decorrência da implantação pelas montadoras, a pedido das seguradoras, de mecanismos de codificação computadorizada nas chaves dos veículos, o qual exige do criminoso possuir equipamentos eletrônicos específicos para poder burlar esse sistema ao furtar o veículo; ou optar por simplesmente tomar as chaves das mãos do motorista, normalmente com uso de violência e armas de fogo e, em alguns casos, vitimando-o de morte.
          Os prejuízos suportados pela sociedade em razão do uso amplo e abusivo do automóvel não são razoáveis. O oferecimento de alternativas viáveis de transporte público e a restrição do transporte individual motorizado são urgentes. Os problemas de saúde, a violência e as mortes causados pelo uso abusivo, pelos acidentes, pela poluição e pelos crimes relacionados com os veículos demonstram a incoerência da ausência de políticas públicas urgentes, abrangentes e sérias, que ao mesmo tempo possibilitem meios alternativos de transporte e restrinjam o uso do automóvel. A realidade apresenta o automóvel não como um remédio para a necessidade de locomoção, mas como um veneno para a sociedade.

terça-feira, 13 de março de 2012

A Democracia que há

          Parece haver um estado democrático no Brasil. Escolhemos nossos governantes e nossos legisladores; a maioria da população é eleitora; não há censura prévia dos meios de comunicação; e há liberdade partidária. Formalmente vive-se uma democracia. De fato, porém, o Estado brasileiro é autoritário. Manifestações públicas são reprimidas com severidade; direitos fundamentais são ignorados, especialmente das pessoas mais pobres; e críticas aos poderes e poderosos são exemplarmente punidas, sempre respeitando-se as leis em vigor. A repressão da atualidade transveste-se de ordem jurídica. Hoje não são necessários grupos de extermínio, polícias secretas, prisões arbitrárias em porões ou sequestros. A truculência não precisa mais ser clandestina, podendo ser exercida à luz do dia e sob o olhar da sociedade e da imprensa, pois é legitimada por uma ordem jurídica aceita como justa.
          Os direitos de manifestação e de greve são garantidos constitucionalmente. O exercício desses direitos, todavia, deve se dar de modo muito discreto, sem afetar o cotidiano da cidade ou do estado em que ocorre, sob pena de ser julgado ilegal; de haver ordem judicial de dispersão do movimento ou de retomada das atividades, com imposição de multas ao sindicato ou associação organizadora; e de ter seus líderes e alguns outros participantes presos por desobediência ou desacato. É o mesmo que proibi-las. Uma greve que não cause transtorno a um serviço ou paralise uma empresa perde a essência de sua força, não serve para nada. Uma manifestação que não chame à atenção, que não tome as ruas, que não faça barulho, não é uma manifestação pública, é um encontro privado.
A greve dos caminhoneiros autônomos distribuidores de combustíveis ocorrida nesta semana em São Paulo recebeu uma ordem judicial para ser finalizada e serem as atividades retomadas no mesmo dia em que ela iniciou. Suas reivindicações não precisaram ser negociadas. Participantes da manifestação pela liberdade de expressão, que pedia discussão da descriminalização da maconha, no ano passado, também em São Paulo, foram presos com base numa ordem expedida pelo tribunal estadual sob a alegação de incitação ao crime.
          Sob o pretexto de manutenção da ordem jurídica, inúmeras medidas repressoras são tomadas com a finalidade de impedir cidadãos, geralmente os pobres, de exercer seus direitos, quando isto se dá contra interesses de pessoas ou grupos economicamente fortes. O caso recente de maior repercussão foi o do bairro Pinheirinho em São José dos Campos. O interesse de um famoso especulador financeiro foi sobreposto ao direito das centenas de famílias à moradia, com uso de extrema violência pela policia militar, amparada por ordem judicial e acompanhada no ato por um desembargador. Casos como esse são, infelizmente, rotineiros. Reintegrações de posse truculentas contra movimentos dos sem-teto e dos sem-terra são recorrentes. Algumas ficam famosas, como essa do Pinheirinho ou a de Eldorado dos Carajás. Da maioria, pouco se ouve falar.
          Outro mecanismo legal de repressão são as condenações por danos morais. Inserida no direito brasileiro pela Constituição de 1988, a indenização moral, que seria um mecanismo de defesa do direito fundamental à honra, tem sua finalidade constantemente distorcida pelo judiciário, que a usa para impedir a divulgação de fatos e opiniões. Não se pratica mais a censura prévia nem se prendem mais jornalistas para que se calem. O risco de sofrer uma condenação por danos morais, entretanto, torna muito perigoso divulgar alguma informação ou, principalmente, expressar alguma opinião que contrarie alguém com recursos e influência. Casos como o do jornalista paraense que foi condenado na justiça estadual a indenizar um grande empresário do Paraná por publicar matéria em que o chamava de grileiro, apesar de confirmada por sentença federal a grilagem, servem de exemplo. A justificativa da defesa da honra pode ser manipulada até extremos, como no caso da proibição, pelo tribunal do Distrito Federal, dirigida ao jornal Estado de São Paulo, de publicar matérias a respeito do caso Boi Barrica, por considerar a divulgação de fatos desse caso potencialmente ofensiva à moral da família Sarney.
          Não vivemos uma democracia porque realmente não temos a liberdade que é intrínseca à democracia. Não basta a previsão de liberdades e direitos se o seu exercício real não é possível. A concessão de ordens e condenações judiciais reprimindo o exercício da cidadania é prática contrária a uma democracia de fato. As limitações ao exercício eficaz do direito de greve, as proibições de manifestação pública, os impedimentos à defesa de direitos fundamentais pelos cidadãos mais pobres e a imposição de indenizações morais contra a divulgação de fatos ou a livre manifestação de opinião demonstram a permanência de um estado autoritário no Brasil. Por não ser clandestina, e sim amparada por decisões judiciais e interpretações injustas da legislação, a repressão não se torna legítima.