sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Constituição, Democracia e Judiciário e Oligarquia

          A constituição brasileira outorgada em 1988, logo em seu artigo 1º, determina a República Federativa do Brasil como um estado democrático de direito e a origem no povo de todo o poder, cujo exercício se dá diretamente ou por meio de representantes eleitos. Abstraindo-se a polêmica em torno da possibilidade de ser a ideia “democracia representativa” contraditória face à origem grega do conceito de exercício direto do poder pelos cidadãos, verifica-se outro conflito, muito mais concreto, entre o mandamento constitucional e a realidade institucional do Judiciário.
          Não há eleições para o Judiciário no Brasil, e os julgamentos não são realizados pelo conjunto dos cidadãos. O descumprimento do preceito inicial da Constituição é evidente. Para a solução deste conflito, respeitando-se a norma fundamental, ou realizam-se eleições para o sufrágio popular apontar mandatários para o exercício desse Poder, ou considera-se o Judiciário não um poder, mas um mero órgão de solução de controvérsias pertencente ao Poder Executivo ou ao Legislativo.
          É verdade que o “status” de Poder e o sistema de escolha de seus membros em vigor são previsões da mesma Constituição. A contradição, portanto, nasce “constitucional”. O estado de direito, entretanto, exige que conflitos de normas sejam solucionados, no mínimo em respeito à coerência do sistema jurídico.  
Uma contradição entre uma norma legal e uma constitucional tem uma solução fácil, que é a prevalência desta última. O conflito entre normas constitucionais é de natureza mais complexa. A doutrina jurídica alemã desenvolveu a tese das normas constitucionais inconstitucionais para a solução de questões como a presente. Faz-se uma espécie de hierarquização das disposições constitucionais mesmas de acordo com a importância para o sistema jurídico e político.
Parece indiscutível, desse modo, que as normas que estabelecem a obrigatoriedade do sufrágio popular para escolha de quem exercerá os poderes da república e a tripartição destes poderes, são hierarquicamente superiores à determinação da escolha dos membros do Poder Judiciário por concurso público ou nomeação pelo Poder Executivo, o que leva à inconstitucionalidade do sistema de escolha dos magistrados no Brasil.
As consequências dessa verificação são muito graves. Essa inconstitucionalidade resulta na ilegitimidade do exercício da jurisdição por todos os juízes brasileiros e na inexistência de todas as decisões – sentenças, liminares, cautelares etc. – do nosso Poder Judiciário. Nada do que foi decidido desde três de outubro de 1988 tem validade. Nenhuma partilha, guarda, anulação, absolvição ou condenação pode sobreviver à inconstitucionalidade.
Tanto a gravidade jurídica e política quanto o potencial de danos sociais desta celeuma constitucional são tão emergentes que a simples negação de sua existência impera. Embora a simplicidade hermenêutica de sua verificação, o problema não merece uma proposta sequer de emenda constitucional. Fazem-se ouvidos moucos.
A omissão é assustadora. A sua causa pode ser histórica. Com membros oriundos de uma seleção ideológica rigorosa dentre a elite nacional, a magistratura brasileira pode ter sido a escolhida num pacto oligárquico ao final da década de 1970 para exercer a função de tutora da democracia, até então exercida pelas forças armadas.
O Brasil historicamente é governado por oligarquias. Mesmo as mudanças aparentemente revolucionárias do estado brasileiro dão-se, em regra, pelas mãos dos grupos ocupantes das mais altas camadas da sociedade, com nítido propósito conservador. Foi assim nas proclamações da independência e da república ou nos golpes de estado do século XX.
Historicamente, as diversas repúblicas do Brasil se autoproclamam democráticas, a despeito de serem idealizadas, instituídas e exercidas pelas oligarquias, o que deixa a expressão grega como formalismo e argumento de propaganda. Para a segurança da elite no poder, são criados mecanismos de controle para que essa formalidade não ponha em risco o sistema de governo de fato. Tivemos voto censitário, aberto, masculino e restrito a alfabetizados, além do colégio eleitoral.
Uma premissa da manutenção do poder oligárquico é que os sistemas constitucionais, legais e eleitorais têm que ser modificados à medida que a capacidade social de percepção de suas falácias evolui. Fundamentado na alegação de combate de um “perigo comunista”, o modelo criado na década de 1960, em que as forças armadas exerceram a tutela da “democracia” pelo controle da escolha dos principais ocupantes dos poderes públicos, esgotou-se por graves crises econômica e política. A partir do final da década de 1970 foi engendrado um novo modelo, mais aparentemente democrático.
Entrou em vigor em 1979 tanto a Lei da Anistia que tornou impuníveis todos os crimes praticados pelos então “tutores da democracia”, garantindo-lhes sua tranqüilidade, como a Loman – Lei Orgânica da Magistratura Nacional, garantindo aos magistrados proteção ampla, que os torna praticamente imunes no exercício de suas funções.
 A Constituição de 1988 completa a transição. Com sua complexidade e extensão, praticamente qualquer norma ou ato oriundos dos demais poderes, agora eleitos de fato, pode ser afastado pelo Judiciário, cujos membros são vitalícios e não escolhidos pelo povo, por inconstitucionalidade. Os instrumentos criados para o controle de constitucionalidade (concreto e, especialmente, abstrato) das normas infraconstitucionais garantem ao Poder Judiciário a possibilidade de barrar a concretização de qualquer alteração legal ou institucional no estado brasileiro.
Revelado este obstáculo ao exercício da Democracia como garantido pelo artigo 1º da Constituição Federal, resta-nos lutar para afastá-lo, sob pena de o povo brasileiro permanecer ludibriado e impedido de exercer o poder que deve ser seu, pelo menos nos limites já previstos constitucionalmente. Um Poder Judiciário composto por mandatários escolhidos pelo povo, além de ser justo, pode ser uma possibilidade para a conquista de fato da Democracia.

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