Constituição,
Democracia e Judiciário e Oligarquia
A constituição brasileira
outorgada em 1988, logo em seu artigo 1º, determina a República Federativa do
Brasil como um estado democrático de direito e a origem no povo de todo o
poder, cujo exercício se dá diretamente ou por meio de representantes eleitos.
Abstraindo-se a polêmica em torno da possibilidade de ser a ideia “democracia
representativa” contraditória face à origem grega do conceito de exercício
direto do poder pelos cidadãos, verifica-se outro conflito, muito mais
concreto, entre o mandamento constitucional e a realidade institucional do
Judiciário.
Não há eleições para o
Judiciário no Brasil, e os julgamentos não são realizados pelo conjunto dos
cidadãos. O descumprimento do preceito inicial da Constituição é evidente. Para
a solução deste conflito, respeitando-se a norma fundamental, ou realizam-se
eleições para o sufrágio popular apontar mandatários para o exercício desse
Poder, ou considera-se o Judiciário não um poder, mas um mero órgão de solução
de controvérsias pertencente ao Poder Executivo ou ao Legislativo.
É
verdade que o “status” de Poder e o sistema de escolha de seus membros em vigor
são previsões da mesma Constituição. A contradição, portanto, nasce
“constitucional”. O estado de direito, entretanto, exige que conflitos de
normas sejam solucionados, no mínimo em respeito à coerência do sistema
jurídico.
Uma contradição entre uma norma legal e uma
constitucional tem uma solução fácil, que é a prevalência desta última. O conflito
entre normas constitucionais é de natureza mais complexa. A doutrina jurídica
alemã desenvolveu a tese das normas constitucionais inconstitucionais para a
solução de questões como a presente. Faz-se uma espécie de hierarquização das
disposições constitucionais mesmas de acordo com a importância para o sistema
jurídico e político.
Parece indiscutível, desse modo, que as normas que
estabelecem a obrigatoriedade do sufrágio popular para escolha de quem exercerá
os poderes da república e a tripartição destes poderes, são hierarquicamente
superiores à determinação da escolha dos membros do Poder Judiciário por
concurso público ou nomeação pelo Poder Executivo, o que leva à
inconstitucionalidade do sistema de escolha dos magistrados no Brasil.
As consequências dessa verificação são muito graves.
Essa inconstitucionalidade resulta na ilegitimidade do exercício da jurisdição
por todos os juízes brasileiros e na inexistência de todas as decisões –
sentenças, liminares, cautelares etc. – do nosso Poder Judiciário. Nada do que
foi decidido desde três de outubro de 1988 tem validade. Nenhuma partilha,
guarda, anulação, absolvição ou condenação pode sobreviver à
inconstitucionalidade.
Tanto a gravidade jurídica e política quanto o
potencial de danos sociais desta celeuma constitucional são tão emergentes que
a simples negação de sua existência impera. Embora a simplicidade hermenêutica
de sua verificação, o problema não merece uma proposta sequer de emenda
constitucional. Fazem-se ouvidos moucos.
A omissão é assustadora. A sua causa pode ser
histórica. Com membros oriundos de uma seleção ideológica rigorosa dentre a
elite nacional, a magistratura brasileira pode ter sido a escolhida num pacto
oligárquico ao final da década de 1970 para exercer a função de tutora da
democracia, até então exercida pelas forças armadas.
O Brasil historicamente é governado por oligarquias.
Mesmo as mudanças aparentemente revolucionárias do estado brasileiro dão-se, em
regra, pelas mãos dos grupos ocupantes das mais altas camadas da sociedade, com
nítido propósito conservador. Foi assim nas proclamações da independência e da
república ou nos golpes de estado do século XX.
Historicamente, as diversas repúblicas do Brasil se
autoproclamam democráticas, a despeito de serem idealizadas, instituídas e
exercidas pelas oligarquias, o que deixa a expressão grega como formalismo e
argumento de propaganda. Para a segurança da elite no poder, são criados
mecanismos de controle para que essa formalidade não ponha em risco o sistema
de governo de fato. Tivemos voto censitário, aberto, masculino e restrito a
alfabetizados, além do colégio eleitoral.
Uma premissa da manutenção do poder oligárquico é que
os sistemas constitucionais, legais e eleitorais têm que ser modificados à
medida que a capacidade social de percepção de suas falácias evolui. Fundamentado
na alegação de combate de um “perigo comunista”, o modelo criado na década de
1960, em que as forças armadas exerceram a tutela da “democracia” pelo controle
da escolha dos principais ocupantes dos poderes públicos, esgotou-se por graves
crises econômica e política. A partir do final da década de 1970 foi engendrado
um novo modelo, mais aparentemente democrático.
Entrou em vigor em 1979 tanto a Lei da Anistia que
tornou impuníveis todos os crimes praticados pelos então “tutores da
democracia”, garantindo-lhes sua tranqüilidade, como a Loman – Lei Orgânica da
Magistratura Nacional, garantindo aos magistrados proteção ampla, que os torna
praticamente imunes no exercício de suas funções.
A Constituição
de 1988 completa a transição. Com sua complexidade e extensão, praticamente
qualquer norma ou ato oriundos dos demais poderes, agora eleitos de fato, pode
ser afastado pelo Judiciário, cujos membros são vitalícios e não escolhidos
pelo povo, por inconstitucionalidade. Os instrumentos criados para o controle
de constitucionalidade (concreto e, especialmente, abstrato) das normas
infraconstitucionais garantem ao Poder Judiciário a possibilidade de barrar a
concretização de qualquer alteração legal ou institucional no estado
brasileiro.
Revelado este obstáculo ao exercício da Democracia como
garantido pelo artigo 1º da Constituição Federal, resta-nos lutar para afastá-lo,
sob pena de o povo brasileiro permanecer ludibriado e impedido de exercer o
poder que deve ser seu, pelo menos nos limites já previstos
constitucionalmente. Um Poder Judiciário composto por mandatários escolhidos
pelo povo, além de ser justo, pode ser uma possibilidade para a conquista de
fato da Democracia.