A
tortura “legalizada”
Conforme os termos da Convenção das
Nações Unidas Contra a Tortura, agentes públicos e privados em função pública,
como segurança, por exemplo, cujas atividades estão ligadas ao sistema
prisional brasileiro, são torturadores. A aplicação do direito penal do Brasil
é conflitante com os termos daquela convenção, principalmente em razão da
prevalência de uma finalidade protetiva patrimonial do direito penal nacional e
da má formação dos operadores do Direito, em especial no tocante aos Direitos
Humanos. Uma grande reestruturação dos mecanismos de aplicação do Direito Penal
no Brasil é mais urgente do que uma mera reforma legislativa para endurecimento
das penas.
Usa-se correntemente a frase: “cadeia
não é hotel”, ou alguma outra semelhante, para exprimir a ideia de que não
seria justo investimentos de infraestrutura no sistema prisional porque as
pessoas lá inseridas não teriam direito a qualquer conforto, merecendo passar
seu tempo de cárcere em condições as mais “penosas”. Não há segredo sobre as
degradantes cadeias brasileiras: falta extrema de higiene, violência
generalizada, cinco ou dez pessoas ocupando espaço destinado a apenas uma etc. Situação
que indubitavelmente é a descrita pelo artigo 1º da Convenção da ONU, que
considera tortura infligir dores ou sofrimento agudos, físicos ou mentais, com
finalidade de castigo. Esta mesma norma determina que são autores da tortura
quem praticou diretamente os atos que resultaram em dor ou sofrimento e,
também, quem instigou, deu consentimento ou aquiescência. Não é difícil
concluir-se que não só o carcereiro que mantém o preso em sofrimento, mas o
policial que o prende, o delegado que o mantém preso, o promotor que pede a sua
condenação e o juiz que o sentencia determinando a pena de prisão são
torturadores, no teor da norma internacional.
O problema pode estar na eleição do
Direito Penal como um meio de proteção do rico contra o pobre, promovendo a
segurança do patrimônio em prevalência a qualquer outro valor. Não faltam
estatísticas demonstrando que as condenações penais no Brasil, quase que
exclusivamente recaem sobre os mais pobres, pela autoria de crimes contra o
patrimônio. Para as modalidades de crime, como os crimes tributários ou contra
a economia, por exemplo, que em tese teriam como autores cidadãos mais
abastados, praticamente não ocorre a prisão dos autores. E os crimes contra a
vida em que a vítima é pobre, em mais de noventa por cento dos casos não é esclarecida
a autoria.
A ignorância dos agentes, na maioria
dos casos, pode ser uma melhor explicação das suas condutas do que um desígnio
covarde. Dos policiais e carcereiros não se exige formação superior. Sua
admissão se dá por um concurso em que se cobram noções de português e regras
jurídicas burocráticas básicas. Após o ingresso no serviço público, há uma
formação específica, mas superficial e rápida, de alguns poucos meses. Dos
juízes, promotores e delegados é exigida a diplomação em Direito, o que não
garante formação suficiente para o entendimento um pouco mais profundo do papel
que executam na sociedade e de como ela funciona. Os cursos jurídicos no Brasil
deixaram de ser cursos de “Ciências Sociais e Jurídicas” e passaram a cursos de
“Direito” por causa das reformas ocorridas nas décadas de 1960 e 1970, que
privilegiaram a formação burocrática e tecnicista em detrimento da humanista,
com o abandono do currículo único pelo mínimo. Como reflexo, os graduados em
Direito não mais recebem a formação social e humanista que lhes era marcante, o
que lhes limita o entendimento das causas, finalidades e consequências de seus
atos profissionais.
Adiciona-se a grande concorrência dos concursos, que privilegia quem tem
possibilidade de não trabalhar durante os estudos para dedicar-se à preparação
para as provas; além da cobrança de um conhecimento detalhado das leis em
vigor, simplesmente, sem mais profundas indagações sociológicas, históricas ou
filosóficas. Há, ainda, o agravante de os candidatos mais propensos ao sucesso,
nestes concursos, serem jovens oriundos das classes sociais mais abastadas, que
nunca exerceram uma atividade profissional para seu sustento e, portanto,
desconhecem, na prática, o mercado de trabalho e as dificuldades enfrentadas
pela maioria da população para sua sobrevivência.
Deste amálgama de ignorância e insensibilidade
resulta a prática cotidiana de tortura (conforme entendida pela Convenção da
ONU aqui ratificada) no Brasil ao ser cumprida a legislação penal em vigor. Uma
solução para este conflito passa pela estruturação de um sistema prisional com
condições razoáveis de higiene e conforto para os detentos; pela reforma do
Direito Penal para previsão de penas e efetividade de condenações conforme
critérios de justiça condizentes com os princípios da democracia; pela melhor
formação dos chamados operadores do direito; e por critérios mais socialmente
sensíveis e justos de seleção dos agentes públicos envolvidos com o sistema
prisional e o Poder Judiciário.
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