Automortes
Mais do que um meio de transporte inadequado para uso generalizado e
preferencial nas grandes cidades, os automóveis são um problema de saúde
pública. Não se discute mais se é viável a priorização dos automóveis para o
deslocamento da população dos maiores centros urbanos. Imensos investimentos em
avenidas, túneis e viadutos se mostram insuficientes para garantir a fluidez
dos veículos das ricas metrópoles dos países do norte e das caóticas
aglomerações urbanas do sul. Algumas horas são perdidas em congestionamentos
todos os dias por cada morador, o que resulta em graves prejuízos à qualidade
de vida, à saúde e à economia. Nos países com infraestrutura mais deficiente,
como o Brasil, também sofrem os motoristas das cidades médias. Esses problemas,
todavia, não são os únicos nem os mais graves resultantes do automóvel. É elevado
o número de mortes resultado da utilização em massa dessa máquina, em virtude
dos acidentes em que está envolvida, da poluição que causa e dos crimes dos
quais é a motivação. Os benefícios desse meio de transporte acabam por ser suplantados
pelos danos que causa.
Mais de quarenta mil pessoas morrem
por ano no Brasil em acidentes com automóveis, número equivalente a uma guerra
de grandes proporções. Não é a má conservação das vias ou a qualidade dos
veículos o motivo de tantas mortes. A maioria desses acidentes tem como causa a
imprudência dos motoristas. O comportamento inadequado ao dirigir, apesar do
risco evidenciado pelas estatísticas, explica-se pelo despreparo do condutor
desde sua formação social até a preparação para o exame de habilitação. Há
difundida na sociedade uma relação muito intensa entre automóvel e poder, a qual
a publicidade das montadoras e os esportes motorizados só vêm acentuar.
Inúmeros estudos científicos realizados desde o início da década de 1940,
quando esta máquina se popularizava, comprovam que o comportamento ao volante das
pessoas se altera para maior agressividade, competitividade, egoísmo e sensação
de potência. Permeados de superficialidade e corrupção, a má qualidade da
formação nas auto-escolas e o problemático sistema de avaliação dos candidatos
garantem a perpetuação do comportamento assassino dos motoristas.
A poluição emitida pelos automóveis
não é composta somente de óxidos de carbono, causadores de efeito estufa na
atmosfera, e de nitrogênio, responsável pela chuva ácida, mas também de
compostos de enxofre e partículas sólidas, que causam danos gravíssimos à saúde
de toda a população. A expectativa de vida nas maiores cidades é diminuída
entre dois e cinco anos em decorrência da poluição dos veículos. Problemas
respiratórios, enfartos cardíacos e acidentes vasculares cerebrais são
potencializados. Em épocas de maior concentração de poluentes, milhares de
crianças e idosos sobrecarregam os hospitais. O preço pago pela população das
cidades pela escolha equivocada do transporte, priorizando-se o automóvel, são
a saúde e a vida.
A violência e a morte também são
produto da criminalidade relacionada com os veículos. Furtos e roubos de automóveis
ocorrem em número assustador em cidades de todos os portes. Um mercado negro
gigantesco de autopeças e veículos clonados funciona em todo o país, em alguns
casos com a conivência ou, até mesmo, a participação das autoridades. A
indústria do seguro lucra com prêmios (valor pago à seguradora pelo seguro) cada
vez mais altos, porém obrigatórios, face à grande possibilidade de perda do
bem. Com o agravante de que nos últimos anos aumentou sensivelmente a proporção
de roubos (subtração com violência) e latrocínios (matar para roubar) em
decorrência da implantação pelas montadoras, a pedido das seguradoras, de
mecanismos de codificação computadorizada nas chaves dos veículos, o qual exige
do criminoso possuir equipamentos eletrônicos específicos para poder burlar
esse sistema ao furtar o veículo; ou optar por simplesmente tomar as chaves das
mãos do motorista, normalmente com uso de violência e armas de fogo e, em
alguns casos, vitimando-o de morte.
Os prejuízos suportados pela sociedade
em razão do uso amplo e abusivo do automóvel não são razoáveis. O oferecimento
de alternativas viáveis de transporte público e a restrição do transporte
individual motorizado são urgentes. Os problemas de saúde, a violência e as
mortes causados pelo uso abusivo, pelos acidentes, pela poluição e pelos crimes
relacionados com os veículos demonstram a incoerência da ausência de políticas
públicas urgentes, abrangentes e sérias, que ao mesmo tempo possibilitem meios
alternativos de transporte e restrinjam o uso do automóvel. A realidade
apresenta o automóvel não como um remédio para a necessidade de locomoção, mas
como um veneno para a sociedade.
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